“Agora o seringal é no punho da rede”, afirma seringueiro em relação às mudanças no ramo
Com a modernização dos seringais, rotina das novas gerações de seringueiros é bem diferente da vida dos antepassados deles
Para o seringueiro Adolfo Saunier, 55, a modernização dos
seringais mudou o processo de extração do látex no Amazonas e permitiu o
retorno dos seringueiros
O
cenário dos seringais dos tempos modernos não guarda qualquer
semelhança com o do tempo dos Soldados da Borracha, no período da
Segunda Guerra Mundial, quando era espaço de escravidão, doença e
tragédias, objeto de pesquisa do mestrando Frederico Alexandre de
Oliveira Lima. “Agora o seringal é no punho da rede”, afirma Josué
Afonso Barbosa, 44, que trabalha no seringal de cultivo Piquié, na
comunidade São José 2, no Município de Itacoatiara (a 180 quilômetros de
Manaus).
A
comparação feita por Josué é para lembrar que nos seringais nativos, os
trabalhadores eram obrigados a percorrer longas distâncias para dar
conta de uma produção de leite. Nos seringais de cultivo, ainda poucos
no Estado, as árvores são plantadas próximas umas das outras e
delimitadas a uma área, o que facilita a coleta. Outro fator importante
para o crescimento da atividade, são os subsídios dados pelos governos
federal e estadual, assim como de algumas prefeituras.
No
ano passado, por meio da Agência de Desenvolvimento Sustentável (ADS), o
governo repassou, ao pagamento da subvenção da borracha, mais de R$ 800
mil, beneficiando 13 associações, ou 1,2 mil famílias de extrativistas
de seringueiros residentes nos municípios de Manicoré, Lábrea, Canutama,
Pauini, Boca do Acre, Eirunepé, Carauari e Itacoatiara. O dinheiro
equivale ao pagamento de R$ 1 ao seringueiro para cada quilo da borracha
natural comercializada, mediante apresentação da nota fiscal de vendas.
De acordo com a ADS, duas mil famílias em 18 municípios têm a missão de
fazer renascer a matéria prima, o látex, que sai da seringueira.
HISTÓRIA
Eleito
presidente da Cooperativa de Seringueiros de Itacoatiara e outros seis
municípios, Adolfo Saunier, 55, confirma os dias tranquilos para quem
trabalha com seringa. Sem precisar fazer o processo de defumação,
causador de danos sérios à saúde, ele conta já ter cortado muita seringa
quando era adolescente, tarefa abandonada por falta de mercado. Na
retomada, sente-se otimista. “Temos outra atividade, além de borracha,
mas os ganhos com ela melhoraram para os produtores, pois temos dinheiro
que não existia antes”, explica ele, citando que, com o financiamento,
os agricultores começaram a melhorar as condições de vida.
Na
associação comandada por ele, estão pessoas dos municípios de Nova
Olinda, Autazes, Maués, Itacoatiara e Urucurituba e Silves. A produção é
entregue a Iranduba e Manicoré.
Casado,
com três filhas e um neto, Saunier mora na comunidade Paraná da Serpa,
em Itacoatiara, e respira, literalmente, outros ares. A coleta do leite
ainda é feita na madrugada, mas não há necessidade de uma jornada tão
longa como antigamente e nem de grandes sacrifícios, pois o processo de
coalho do leite é facilitado por um produto. Ter conhecido pessoas
escravizadas por patrões dos seringais dão a ele a certeza de que hoje
vale a pena ser seringueiro. “Nós somos respeitados, isso é novidade que
vale a pena saber”, assegura.
‘Má fama’ afasta os novatos
O
presidente do Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS), Manuel Cunha,
filho, neto e bisneto de seringueiros atraídos do Ceará com falsas
promessas de riquezas, é outro que destaca os novos tempos chegados aos
seringais. Para ele, no entanto, o legado de exploração deixado pelos
patrões da seringa no século passado ainda é suficiente para
desestimular a entrada de novas pessoas na atividade.
Manuel,
que passou 18 anos cortando seringa com lamparina, diz que isso impedia
os seringueiros verem as onças, que sempre existiram nas matas.
Natural
do município de Carauari (a 702 quilômetros), ele destaca a
generosidade de uma seringueira, árvore que, segundo afirma, “dá a sua
seiva durante várias gerações”. Segundo ele, que nasceu no Seringal São
Romão, colocação Mandioca, foi dali que o pai dele tirou a renda para
criar os filhos, da mesma forma que ele também criou os dele. “Se meu
pai fosse pescador, eu teria que pegar outros peixes para sustentar
minha família, se fosse madeireiro ou agricultor, teria que derrubado
madeira ou limpado outras áreas. Esse é o diferencial do seringal, pois
as mesmas seringueiras usadas por meu pai e por mim continuam
produzindo, porque a natureza é uma mãe”, finaliza.
Memórias do tempo difícil
“Fui
Soldado de Borracha no Rio Madeira, em Humaitá. Desde novinho eu
trabalhava. Saía 9h da noite chegava ao meio dia para defumar o leite.
Dormíamos um pouco e logo tinha que acordar para voltar aos seringais”. O
relato é de Manuel Lobato de Castro, 84, que sobreviveu ao tempo em que
o adjetivo melhor para estes trabalhadores não era de soldado, mas
escravo. “A gente não via dinheiro. Tudo o que era produzido trocávamos
por roupa e comida, mas sempre estávamos devendo os patrões”, disse ele,
referindo-se aos donos dos seringais, que não os deixavam sair porque
estavam em débito.
Das
histórias tristes, lembra de um amigo morto por uma onça no seringal e
dos escapes de flechadas de índios. Pelas conta dele, conseguia produzir
o equivalente a 60 quilos da borracha defumada por semana e para isso
tinha que andar na mata carregando uma escada para alcançar o caule das
seringueiras mais altas. Manoel disse ter trabalhado com Marina Silva,
no Seringal do Bagaço, no estado do Acre, onde conheceu a ex-candidata à
presidência da República.
Depois
de brincar dizendo ter agarrado uma onça que fugiu deixando só o couro
nas mãos dele, Manoel “fala sério” cobrando do governo uma indenização
para os soldados da borracha com o dinheiro que os EUA teriam enviado
para o País em pagamento à participação dos pracinhas na guerra e dos
seringueiros nas florestas. Com um exemplar da poronga, vasilha usada
para a coleta do leite, outro da lamparina usada nos seringais, que faz
questão de preservar, Manoel pede reconhecimento aos que puseram a vida
em risco em prol dos interesses do Brasil. “É só o que precisamos”,
afirma.
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